sexta-feira, 13 de abril de 2007

Carlos Alberto Soffredini

Carlos Alberto Soffredini (Santos SP 1939 - São Paulo SP 2001).

Autor e diretor.

Trabalhando com grupos teatrais característicos da década de 70, Soffredini constrói sua carreira como diretor e dramaturgo, funções que costuma reunir nos projetos que realiza, tendo como premissa a pesquisa da cultura popular brasileira.
Forma-se em letras na Faculdade de Filosofia de Santos, onde participa de um grupo amador como diretor e autor. Em 1967 ganha prêmio do Serviço Nacional de Teatro, SNT, pelo texto O Caso Dessa tal de Mafalda que Deu o que Falar e que Acabou como Acabou, num Dia de Carnaval. Forma-se ator pela Escola de Arte Dramática, onde dirige, em 1972, Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube, adaptação que realiza para A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente. Em 1975 é convidado a dirigir a peça Farsa com Cangaceiro, Truco e Padre, de Chico de Assis, com produção do Teatro de Cordel de São Paulo. Para realizar o espetáculo, estuda as manifestações cênicas populares e faz levantamentos em circo-teatros da periferia de São Paulo e de cidades do interior. Em 1976 o Sesc o convida para liderar o Projeto Mambembe, para desenvolver espetáculos, com base na cultura popular brasileira, para apresentações em praças públicas. Funda o Grupo Teatro Mambembe, que se guia pela investigação da linguagem visual das formas cênicas brasileiras, dos signos da representação dos intérpretes populares de circo ou televisivos e da estrutura dos textos brasileiros e de língua portuguesa. Soffredini encarrega-se da concepção geral do trabalho, da dramaturgia, da organização das marcações cênicas e das coreografias. Esse projeto produziu a peça A Vida do Grande Dom Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança, adaptada do texto de Antônio José da Silva, com temporada que se iniciou em 1976. Com o fim do apoio do Sesc, em 1977, alguns atores decidem manter o grupo e no mesmo ano apresentam A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente. Adaptada em processo de criação coletiva, incorporou números de canto e dança inspirados nas revistas musicais brasileiras do século XIX e início do XX. Nesse período, já trabalhando com o Pessoal do Victor no espetáculo Na Carrera do Divino, escreve a peça Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu, que o grupo Mambembe resolve montar, com direção de Iacov Hillel. O texto apóia-se no depoimento de circenses retratando os valores tradicionais de uma família do circo. Em 1990, Gabriel Villela encenará esta peça, recebendo uma série de prêmios. Em 1985 Soffredini funda o Núcleo de Estética Teatral Popular, que remontará várias peças de sua autoria. Em 1987 o grupo Ponkã o convida para escrever Pássaro do Poente, com base em uma lenda popular japonesa, espetáculo inspirado e dirigido por Marcio Aurélio. Em Vacalhau e Binho, 1993, grande sucesso de público, utiliza vários textos de Zé Fidelis (personagem criada por Gino Cortopassi para um programa de rádio) e os justapõe em uma série de quadros que têm como elo de ligação um casal de atores portugueses.
Em cinema, é premiado com o Kikito do Festival de Gramado de 1985 pelo roteiro de A Marvada Carne, baseado na peça Na Carrera do Divino. Junto com Walter Avancini, escreve a telenovela Brasileiras e Brasileiros, transmitida pelo SBT de 1990 a 1991.
Soffredini é um autor que sempre se lançou à experimentação, transpondo histórias populares para o teatro, buscando não a reprodução realista das formas populares, mas a revelação do universo poético presente em seus conteúdos.
A.R.

NASCIMENTO/MORTE
1939 - Santos SP - 6 de outubro
2001 - São Paulo SP - 10 de outubro
FORMAÇÃO
1965 - Santos SP - Curso de letras da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras de Santos
1970 - São Paulo SP - Curso de interpretação na Escola de Arte Dramática da ECA/USP

PRINCIPAIS TRABALHOS COMO AUTOR
1965 - O Cristo Nu, direção do autor. Classificou o Teatro Escola da Faculdade de Filosofia de Santos para participar do Festival de Teatro Universitário de Nancy, França, em 1965. Encenada profissionalmente em São Paulo, em 1969
1967 - São Paulo SP - O Caso Dessa Tal de Mafalda que Deu Muito o que Falar e que Acabou como Acabou num Dia de Carnaval
1972/1874 - São Paulo SP - Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube, produção da ECA/USP; em 1973 é dirigida por Osmar Rodrigues Cruz, com produção da Casa do Pequeno Trabalhador, em São Paulo; em 1974 é dirigida pelo autor, com produção do Teatro Tereza Raquel, no Rio de Janeiro
1976 - São Paulo SP - A Vida do Grande Dom Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança, baseada em obra de Antonio José da Silva, produção do Teatro Mambembe
1977 - São Paulo SP - O Diletante, baseada em obra de Martins Penna, produção do Teatro Mambembe
1977 - São Paulo SP - A Farsa de Inês Pereira, baseada em obra de Gil Vicente, produção do Teatro Mambembe
1978 - Salvador BA - Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube, produção do Teatro Castro Alves
1979 - São Paulo SP - Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu, direção de Iacov Hillel, produção do Teatro Mambembe
1979 - São Paulo SP - Na Carrera do Divino, direção de Paulo Betti, produção do Pessoal do Victor
1979 - São Paulo SP - Dercy Beaucoup, direção, produção e interpretação de Dercy Gonçalves
1984 - São Paulo SP - Minha Nossa!, produção do Teatro Mambembe
1986 - São Paulo SP - O Guarani, baseado em obra homônima de José de Alencar, direção de Luís Otávio Burnier, produção do Quadricômico Teatro Mímico
1987 - São Paulo SP - Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube, produção do Núcleo de Estética Teatral Popular
1987 - São Paulo SP - Pássaro do Poente, direção de Márcio Aurélio, produção do Grupo Ponkã
1990 - São Paulo SP - A Estrambótica Aventura da Música Caipira, direção de Wandy Doratiotto
1991 - São Paulo SP - De Onde Vem o Verão, direção de Walmy Rocha
1993 - São Paulo SP - Vacalhau e Binho, direção do autor

PRINCIPAIS TRABALHOS COMO DIRETOR
1974 - Rio de Janeiro RJ - Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube, de sua autoria, produção de Tereza Raquel
1975 - São Paulo SP - Farsa com Cangaceiro, Truco e Padre, de Chico de Assis, para o Teatro de Cordel de São Paulo
1976 - São Paulo SP - A Vida do Grande Dom Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança, de Antônio José da Silva, O Judeu, para o Teatro Mambembe do Sesc
1977 - São Paulo SP - O Diletante, de Martins Penna, e A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente para o Teatro Mambembe
1984 - São Paulo SP - Minha Nossa!, de sua autoria, produção do Teatro Mambembe
1985 - São Paulo SP - Minha Nossa!, produção do Núcleo se Estética Teatral Popular, Núcleo Estep
1987 - São Paulo SP - Na Carrera do Divino, de sua autoria, produção do Núcleo Estep
1993 - São Paulo SP - Vacalhau & Binho, com textos de Zé Fidelis

HOMENAGENS/TÍTULOS/PRÊMIOS
1967 - São Paulo SP - Prêmio do Serviço Nacional de Teatro - melhor autor em O Caso dessa Tal de Mafalda que Deu Muito o que Falar e que Acabou como Acabou num Dia de Carnaval.
1979 - São Paulo SP - Prêmios APCA, Apetesp e Mambembe de São Paulo - melhor autor em Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu, direção de Iacov Hillel, produção do Teatro Mambembe
1979 - São Paulo SP - Prêmios APCA, Apetesp e Mambembe de São Paulo - melhor autor em Na Carrera do Divino, direção de Paulo Betti, produção do Pessoal do Victor
1987 - Rio de Janeiro RJ - Prêmio Mambembe - melhor autor em Pássaro do Poente, direção de Marcio Aurélio, produção do Grupo Ponkã
1992 - São Paulo SP - Prêmios Apetesp, APCA, Molière e Air France - melhor autor em De Onde Vem o Verão, direção de Walmy Rocha

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Cena 1 (1a. parte)

Primeira Parte

Na qual se apresentam os artistas, os personagens que eles vão viver e a história que se vai contar.

Quando o publico vier (se vier), lerá tabuletas – na porta do teatro, no saguão, nas paredes da sala, num canto do palco... – que anunciam: HOJE, CORAÇÃO MATERNO.

Os ARTISTAS devem estar nos seus afazeres normais: a que fará MÃEZINHA na bilheteria, o que viverá BRILHANTINA recebendo os ingressos, etc... O ator que viverá CAMPÔNIO, com um tabuleiro, pode estar vendendo pirulitos de caramelo (daqueles cônicos, que se vendem em circos). A atriz que fará AMADA AMANDA pode estar vendendo retratos seus autografados. E vende assim: ela joga um lenço no ombro de um cavalheiro; quando ele se volta, então ela mostra o retrato.

Cena 1

(Avant-prólogo) – ABERTURA

Na frente da cortina.

(Apagam-se as luzes da platéia. Rufo na bateria. Acende-se um spot-móvel, no meio da cortina. Entra RUY CANASTRA - O APRESENTADOR.)

APRESENTADOR – Senhoras e senhores, rapazes e senhoritas, crianças... BOA NOITE!!! (Silêncio. O Apresentador imobiliza o gesto de grande apresentador para grande publico. Desconfiado) Boa noite. (tempo. Para os bastidores:) Mas o que é que esta acontecendo? Não tem espetáculo hoje e ninguém me avisa nada? (protegendo os olhos da luz, para a platéia:) Não tem ninguém aí? Ô Brilhantina...

BRILHANTINA(O operador do spot-móvel) Ham?

CANASTRA – Brilhantina, ilumina ali pra ver se tem gente.

BRILHANTINA – Se tem gente onde?

CANASTRA – Na platéia, sua besta,

BRILHANTINA – Ah...

(O spot-móvel percorre a platéia)

CANASTRA – Ah, bom... tem gente sim, olha aí... É... Não é nenhum Pacaembu em dia de jogo do Corinthians, mas ate que não está mau...

BRILHANTINA(Gargalhada)

CANASTRA – É ou não é, Brilhantina? (para a platéia) o outro gosta de tirar um sarro... Não, mas é verdade, sô, quê que é? A gente leva um susto mesmo... a gente chega aí todo frajola e tal e "boa noite"... e nada?! É pra ficar mau dentro das calças mesmo, é ou não é? A gente pensa que não veio ninguém! Já pensou?

BRILHANTINA(Gargalhada)

CANASTRA – O outro ali dá risada, mas é sério. Os senhores se ponham na minha situação. A gente arruma tudo... é, porque lá dentro está tudo arrumado como manda o figurino... E o trabalho que dá, caboc’o, vou te contar! E é vestimenta, e pinta cenário, e é coisa que não é bolinho. E a gente combina tudo direitinho como vai ser no dia... Ensaio, né? Então. E a gente se fantasia todo, olha só: manja só a estica, dá só uma olhada... Até cartola, caboc’o, quê que tá pensando? É... Tá pensando que é pouca porcaria? Olha aí. E no fim, a gente chega aqui e... "boa noite" e... NADA?!

BRILHANTINA(Gargalhada)

CANASTRA – Ô, Brilhantina.

BRILHANTINA(rindo) Ham?

CANASTRA – Vê se te manca aí que agora eu tô falando sério, caboc’o!

BRILHANTINA(Gargalhada)

CANASTRA(Divertido) Mas o outro tá pensando que eu sou o quê? Tá pensando que sou palhaço? Não, porque tem muita gente que acha que artista é palhaço, viu? É. Tem muita gente por aí que acha que pra subir num palco tem que ser palhaço, vê se te serve. Agora, eu vou dizer pros senhores o que é que e a acho dessa gente que pensa assim: eu acho que eles... que eles tão certos (e se diverte). É. Tão certos porquê, aqui entre nós, e que ninguém nos ouça, tu acha que gente séria, mas séria mesmo, vai fazer graça pros outros rir? Não, né caboc'o. Agora, triste mesmo foi minha situação agora pouco, é ou não é? Sim, porque de ser palhaço eu já tô até conformado, porque já vi que a sério eu não ia dar certo na vida mesmo. Agora, sente o drama: chegar aqui pra fazer palhaçada e não ter ninguém aí desse lado pra rir dela... ah, é dose, caboc'o, é ou não é?

(A esta altura os ATORES, que vieram entrando pelas passagens da cortina, já estão bem aparentes. MÃEZINHA se adianta disfarçando, sorrindo para o público.)

MÃEZINHA(sorridente) Ruy.

CANASTRA(divertido) Ei, o quê é que tu tá fazendo aqui?! Eu ainda nem te anunciei, nem nada.

MÃEZINHA(sorrindo para a platéia, entredentes) Não fala bobagem, Ruy.

CANASTRA – Vai mulher, desinfeta daí, vai, vai, vai...

MÃEZINHA – RUY!

CANASTRA(para a platéia, divertido) Mas será possível que nem na hora que eu tô aqui no palco fazendo o meu papel de palhaço esta mulher me dá uma folga?

MÃEZINHA – RUUUUUUYYYY!!!

BRILHANTINA(Gargalhada)

(De costas para o público e ralhando com ele, MÃEZINHA tenta tirar CANASTRA de cena puxando-o pelo braço. Não se entende o que ela diz.)

CANASTRA(se livrando dela, sempre divertido) ...que falando bobagem o quê, mulher; eu só tô aqui dizendo a verdade, é ou não é? Pode perguntar aí pra eles.

MÃEZINHA(irritadíssima) A cachaça, isso sim é o que tá falando. A cachaça.

CANASTRA – Eu só tava dizendo aqui que a pior coisa que existe no mundo é alguém subir aqui em cima pra fazer palhaçada...

MÃEZINHA – RRRUUUUYYY!!!

BRILHANTINA(Gargalhada)

CANASTRA – TEATRO... eu disse palhaçada? Eu disse palhaçada, Brilhantina? Não, não, não, não, não! Teatro, pra fazer TE-A-TRO.

BRILHANTINA(Gargalhada)

(MÃEZINHA se afasta rapidamente para o outro canto do palco. O spot-móvel fica em CANASTRA.)

CANASTRA – ...Eu só estava dizendo aqui pro pessoal que... (segue falando)

MÃEZINHA – Brilhantina!

BRILHANTINA(Gargalhada)

CANASTRA(iluminado, segue falando)

MÃEZINHA(no escuro, furiosa) AQUI, BRILHANTINA!

BRILHANTINA(interrompe a gargalhada) Opa! (e gira o spot-móvel para MÃEZINHA).

MÃEZINHA(como apresentadora) Senhoras e senhores, rapazes e senhoritas, respeitável público: (solene) É numa hora tão... afável, né?.. como essa que uma artista se embarga e, procura que procura, não encontra palavras para dar uma satisfação para o seu distinto público. Sim, querido público, uma artista como eu, que tem o seu saber-o-que-fazer num palco; uma artista como eu, da qual, como se diz no vulgo, tem janela...

(CANASTRA e BRILHANTINA mal podem conter o riso.)

MÃEZINHA(comovida) ...uma artista como eu, cuja vida ofertou, todinha nas artes dramáticas – numa hora dessas tem que fazer das tripas coração e vir dizer cara a cara: perdoe. Perdoe, amado público. Como se diz naquele velho ditado popular, errar é humano...

(CANASTRA e BRILHANTINA mal podem conter o riso.)

MÃEZINHA – A nossa Companhia nunca terá deixado por menos para ofertar o melhor de si para o seu querido público, cujo respeito à família brasileira sempre foi seu lema. Mas sempre haverá coisas que são imprevisíveis antes... quer dizer; coisas que não dá pra adivinhar. Porque errar é humano, peço vênia para repetir, e um artista também erra, porque também é feito de carne e osso... Sim, respeitável público, um artista também é feito de carne, osso... e coração.

(CANASTRA E BRILHANTINA a interrompem com sonoras gargalhadas)

MÃEZINHA – RUY!

CANASTRA(Gargalhando) Olha aí, Brilhantina, tu tá vendo, né? Tu tá aí de prova...

MÃEZINHA – RUY CANASTRA!!

CANASTRA Depois diz que o cachaceiro aqui sou eu...

MÃEZINHA(azul) Cala a boca, Ruy!

CANASTRA – Não, porque só pode tá de pileque, é ou não é, Brilhantina?

BRILHANTINA – Ô... (gargalhada).

MÃEZINHA – Cala essa boca, Ruy! Cala essa latrina pelo amor de Deus...

CANASTRA – Ou então é a idade...

MÃEZINHA(uma fúria) RUY CANASTRA!

CANASTRA – É... só pode estar ficando gagá.

MÃEZINHA(perdendo a tentativa de compostura) Idade tem a tua mãe, seu desgraçado!

CANASTRA(divertidíssimo) Brotinho é que a minha mãe não ia ser, né? (gargalhada)

BRILHANTINA(Gargalhada)

MÃEZINHA – Desinfeta daqui desse palco, seu cachaceiro.

CANASTRA – Velhice é fogo...

(Alguns ATORES, vendo a situação esquentar, se arriscam a chamar a atenção de MÃEZINHA para o fato de que ela está perante o respeitável público).

MÃEZINHA – Isso é o que se chama cuspir no prato que comeu...

CANASTRA – Diz aí se não é fogo, Brilhantina.

BRILHANTINA – Ô... (gargalhada)

MÃEZINHA – Não sei como é que uma criatura dessas ainda tem a coragem de avacalhar com a única coisa que lhe restou pra ganhar o pão.

CANASTRA – É que eu não sou muito chegado a pão mesmo. O meu negócio é vinho... (E morre de rir)

BRILHANTINA(Gargalhada)

MÃEZINHA – Ô seu filho da... (os ATORES a seguram) Peraí, peraí... Mas sabe de quem é a culpa disso tudo? É minha mesmo. (batendo na própria cara) Eu é que não devia de ser tão idiota e deixar esse cafajeste apodrecer lá naquele cirquinho de quinta categoria do onde eu tirei ele.

CANASTRA(Gargalhada)

MÃEZINHA(para CANASTRA) Que tu sabe muito bem que se não fosse a estúpida aqui, o teu lugar hoje em dia era caído de bêbado numa sarjeta, com os cachorro te lambendo a boca. (para os ATORES) Me larga!

CANASTRA(divertido) Grande coisa: me tirou da merda pra me jogar na bosta.

BRILHANTINA(Gargalhada)

MÃEZINHA – Ah, é? Seu.,, (e avança aos socos em CANASTRA)

(CANASTRA domina MÃEZINHA e dá-lhe uns tapas. Os ATORES envolvem os dois. O GRUPO sai de cena no meio de uma gritaria.)

Cena 2

(Prólogo) - ABERTURA PROPRIAMENTE DITA

Na frente da cortina

1ª Fase – Aproveitando a Brecha do Número Um

(BRILHANTINA vem para o palco, afasta um pouco a cortina e olha para os bastidores, onde a confusão está armada. Depois se dirige ao público um pouco sem graça, um pouco contente, com a oportunidade.)

BRILHANTINA – Bom... quer dizer: eu acho que só sobrou eu mesmo, né? (ri e olha para os lados, meio travesso). Então. Quer dizer que eu acho que quem vai ter que apresentar hoje sou eu mesmo, né? (ri) (Barulho mais forte, dentro. Susto. Depois:) Olha, e não liga pra isso daí não, viu? Porque isso daí, olha: é todo dia assim, pensa que é só hoje? Qui... aqui ninguém mais dá nem a mínima (ri) Quer dizer, a gente só não deixa se matar, né? Que também não é pra tanto. Mas, como se diz: em briga de marido e mulher... (ri malicioso) quer dizer: ainda se fosse marido e mulher, né? Marido e mulher ali no duro (ri).

(O barulho, dentro, arrefeceu)

BRILHANTINA – (procurando o lugar no palco) Agora é só chegar aqui... Chegar aqui assim, ó: (imita CANASTRA na sua entrada pelo meio da cortina). Ó: (imita de novo) É igualzinho, é ou não é? Então. Quer dizer: falta a fantasia, né? Mas a pança é igualzinha, olha aí: (imita). Eles pensam que eu não sei, viu? Eles pensam que artista aqui é só eles. Mas eu já até disse aí pra eles: qualquer p’oblema pode me botar no show, é ou não é? Quer dizer: o escripi tá todo aqui, ó: (mostra a língua) na pontinha. Também, se não tivesse, né? Quer dizer: só se eu fosse muito burro: toda noite, toda santa noite ouvindo a mesma coisa... Então. É só chegar aqui... (vai para o meio da cortina). É muito fácil, eu já quis até mostrar pra eles, mas pensa que alguém quer saber de me dar uma chance? Qui... Quer dizer: é só chegar aqui (sai de detrás da cortina, imitando CANASTRA): Senhoras e senhores, rapazes e senhoritas, BOA NOITE... É com a máxima satisfação que eu estou aqui para apresentar ao distinto público que esta noite compareceu ao Teatro... (ênfase) o elenco da COMPANHIA MAMBEMBE DE VARIEDADES...

(A música ataca. A cortina abre. O ELENCO entra. BRILHANTINA leva um choque e fica aparvalhado no meio da cena. Depois corre – ou é empurrado – para o seu lugar no spot-móvel.)


2ª Fase – Os Artistas

Telão Fantasia


COMPANHIA –
Senhoras e senhores,
Rapazes e senhoritas,
Crianças...
É com satisfação
Que a nossa Companhia
Pede sua alegria
Pede sua atenção...

CANASTRA – (fala sobre marcação)
...Para o grande espetáculo
Que hoje vai apresentar
Que preparou com carinho,
Pensando em lhe agradar.

COMPANHIA – (canta)
Senhores vão ver hoje, aqui,
Um velho drama, eterno,
Drama que comove sempre,
Chama "Coração Materno".

CANASTRA – (fala sobre marcação)
Mas, sem demoras maiores,
Vamos logo ao que interessa:
Apresentar pros senhores
Os artistas desta peça.

(MÚSICA)
(ainda sobre marcação)

E em primeiro lugar
Quero lhe apresentar
Aquela que, como não?
Dispensa apresentação...
Uma das mais conhecidas
Das artistas mais queridas
Do Teatro nacional
(ênfase)
Nossa estrela principal:
(Com grande ênfase, diz o nome da atriz que viverá o papel de MÃEZINHA)

(MÃEZINHA entra – no seu soirée rosa-forte em renda toda rebordada em miçangas e canutilhos, principalmente nos babados – numa atitude de aplaudam-por-favor- eu-não-mereço. CANASTRA puxa os aplausos)

MÃEZINHA – (sobre os aplausos. Mas se não houver aplausos sobre o lugar dos aplausos, o que é melhor ainda)
Agradecida, agradecida,
Agradecida a vocês!
Meu público!
(canta)
Oh! Que bom que é de ver
Que vocês aqui estão:
Largar a televisão,
O rush ter que vencer
Estacionar contra-mão
Enfrentar fila e empurrão
Isso tudo pra me ver...

CANASTRA – (sobre marcação)
Pois não se arrependerão:
O gran’ papel de Mãezinha,
Que até hoje não tinha
Sua justa interpretação,
Será por ela vivido,
Mas, com tanto colorido
Que jamais o esquecerão.

MÃEZINHA – (canta)
Oh, meu público querido,
Saiba que só seu carinho
Paga pro artista, sozinho,
Seu trabalho dolorido.
Hoje, aqui, tamos lançando
No cenário nacional
(ênfase)
Uma ingênua sem igual:
(Com grande ênfase diz o nome da atriz que viverá CANCIONINA SONG.)

CANCIONINA –
Meu verbo é o verbo amar
Minha meta é a paixão
Só penso em me apaixonar
Meu órgão é o coração.
Não vou dizer, claro, mas
Aqui mêsmo neste palco
Se encontra aquele rapaz
Que eu devo amar...

CAMPÔNIO – Ai, que saco!

MÃEZINHA – (rápida)
Numa boa Companhia
Nunca, jamais faltaria
Um majestoso vilão:

CANASTRA – (com ênfase) Lologigo Valadão...

MÃEZINHA – (com grande ênfase, dirá o nome do ator que viverá LOLOGIGO VALADÃO. Os que estão em cena aplaudem)

LOLOGIGO –
Vamo’ entrar logo direto
No assunto: Eu sou esperto.
Na vida levo a melhor,
Mas estou sempre encoberto.
É chavão, diz o senhor.
É. Mas eu costumo pôr
Tanto amor em não ser certo
Que tenho novo sabor.

MÃEZINHA – (de nariz torcido)
Uma outra figuração
Que, pra chamar a atenção
Toda Companhia tem...

CANASTRA –
Pode deixar que convém
Eu mesmo apresenta essa
Caboc’o, é mulher à beça...
Da próxima; é um mulherão.

MÃEZINHA – Ela veio da Argentina...

CANASTRA – E é uma BOUA menina.

MÃEZINHA – ...Pra Amada Amanda viver...

CANASTRA – Menos pra VI que pra VER...

MÃEZINHA – (Diz rapidamente e sem ênfase o nome da atriz que viverá AMADA AMANDA)

CANASTRA – (Repete, com enorme ênfase, o nome da atriz que viverá AMADA AMANDA)

(Os que estão em Cena puxam aplausos, menos MÃEZINHA)

AMADA –
Ay...
Quiero le decir que si
Quiero que usted vea a mi
Y que olvide los problemas,
Los negocios y las penas
Ay...
Tambien de su sogra esqueza,
Tenga nada en la cabeza...
Quiere usted se divertir?
Mire solamente a mi.

LOLOGIGO –
Desse jeito não vai, não
Tem que pôr mais emoção.

AMADA –
Yo sé bien lo que yo tengo
Conozco todo mi dengo...

LOLOGIGO –
Então mostre o que tem
Pros deste lado também

AMADA –
Tengo esto y mucho más...

MÃEZINHA – Ai! Assim já é demais!

CANASTRA – (rápido)
E agora, muito cuidado,
Se não ficar relaxado
Esta aqui de rir lhe mata
(ênfase)
A nossa atriz caricata...
(com grande ênfase diz o nome da atriz que viverá DONA VIRGÍNIA)

(Os que estão em cena puxam aplausos)

DONA VIRGÍNIA –
De esquecer o enredo
De um público ledo e quedo
De entrar em cena mais cedo
De ser atriz de brinquedo,
Vou lhe contar um segredo:
Disso tudo eu tenho medo.

CANASTRA –
E agora, pra terminar,
Só falta apresentar
O ator que ilumina...
(ênfase)
Nosso amigo Brilhantina...
(com grande ênfase diz o nome do ator que está vivendo BRILHANTINA)

(TODOS aplaudem)

MÃEZINHA –
Uma Companhia é vã
Se não tem um bom galã.

CANASTRA –
E esta, digo aos senhores,
Tem um galã dos melhores
Que é galo pras cachorrinhas

BRILHANTINA – E pros senhores, galinha... (Gargalhada)

CANASTRA – Olha lá como me trata!

MÃEZINHA – (com ênfase) Vivendo o Ruy Canastra...

CANASTRA – Eu mesmo: (com grande ênfase diz o próprio nome)

(TODOS se exibem para o público. CANASTRA se aplaude sozinho)

MÃEZINHA –
Assim, todos os artistas
Fomos postos em revista.

CANASTRA –
Neste palco, hoje, estaremos
Trabalhando pra lhe dar
O que veio aqui buscar.

COMPANHIA –
O melhor de nós faremos.
Torno, aqui, vida em encantamento,
Meu alento eu lhe empresto, não mais...
Como a vida, a cena é um momento,
Está passando, não volta jamais...

(Fecha a cortina enquanto BRILHANTINA pula no palco)

BRILHANTINA –
E outra vez é minha vez:
Hoje, o "Coração Materno"
Drama que é antigo e eterno,
Apresento pra vocês.
Será aqui apresentado
Do jeito mais verdadeiro,
Como é feito em picadeiro
Desde que foi inventado.
Um circo de tradição,
De serragem ou de tablado,
Representa o consagrado
Drama assim. (ênfase)
E atenção...


3ª Fase – A História

Os Cenários desta fase são telões pintados, ingênuos e românticos. A Cena é a "dramatização" da música "Coração Materno", de Vicente Celestino.

Obs.: O drama de mesmo nome, de autoria de Alfredo Viviani, ainda hoje é levado com muito sucesso nos Circos e a dita "dramatização" é o arremate desse drama. Por outro lado, em espetáculos de variedades de Circos mais tradicional, é comum apresentarem-se números que são a "dramatização" de músicas antigas.

TELÃO I – Uma porteira domina a cena. Estrada. Vegetação. Algumas casinhas brancas de colonos. Ao longe, os morros.

APRESENTADOR – Disse um campônio à sua amada:

CAMPÔNIO – Minha idolatrada,
Diga-me o que quer.
Por ti vou matar, vou roubar,
Embora tristeza

CAMPÔNIO – Me cause, mulher.
Provar quero eu que te quero,
Venero teus olhos,
Teu porte, teu ser.
Mas diga tua ordem, espero:
Por ti não importa
Matar ou morrer.

APRESENTADOR – E ela disse ao campônio a brincar:

AMADA – Se é verdade tua louca paixão,
Parte já e pra mim vai buscar
De tua mãe, inteiro, o coração.

APRESENTADOR – E a correr o campônio partiu.
Como um raio na estrada sumiu.
E sua amada qual louca ficou,
E a chorar na estrada tombou.

TELÃO II – Choupana. Porta de entrada nos fundos. Um oratório com Nossa Senhora Aparecida. Jarros com flores.

Obs.: De alguma forma deve-se dar muito destaque a estas flores, depois vai-se saber o porquê.

APRESENTADOR – Chega à choupana o campônio
E encontra a mãezinha
Ajoelhada a rezar.
Rasga-lhe o peito o demônio,
Tombando a velhinha
Aos pés do altar.
Tira do peito sangrando
Da velha mãezinha
O pobre coração
E volta a correr proclamando:

CAMPÔNIO – Vitória! Vitória!
Tem minha paixão.

TELÃO III – Estrada. Barranco feito por grandes pedras.

APRESENTADOR – Mas em meio à estrada caiu
E na queda uma perna partiu
E à distância saltou-lhe da mão
Sobre a terra, o pobre coração...
Neste instante uma voz ecoou:

(Por efeito de iluminação e transparência do telão, MÃEZINHA aparece numa das pedras da margem da estrada, no lugar exato onde caiu o coração).

MÃEZINHA – Magoou-te, pobre filho meu?
Vem buscar-me, filho, aqui estou...

(Muda a música. Sobe o Telão III. Toda a Companhia está em cena)

COMPANHIA – Aqui estou pra te dar, por momentos,
Ilusão, vida, encantamento.
Vem buscar-me depressa pois eu...
Passo rápido
Eu sou cômico
Eu sou trágico
E é teu meu coração...
Vem
Ver
Vem
Rir
Vem
Chorar
Vem
Me amar
Vem buscar-me que ainda sou teu.

(E isto cantando, colocam-se em gestos de apoteose e termina o prólogo).

Cena 3 (2a. parte)

Segunda Parte

Na qual se vêem os personagens em ação

Cena 3

SOBRE OS ADMIRADORES DO TEATRO

No camarim de MÃEZINHA.

É um espaço pequeno onde cabe uma casa toda. Cama, fogão, mesa, geladeira, sofá, armários, televisão... Uma casa brasileira com todos os seus utensílios e inuntensílios. Onde cabe um camarim. Cabides com figurinos, bancada de maquiagem, espelho... E é tudo arrumadinho e limpo, ao contrário do que se poderia imaginar. Tapetes feitos à mão, cortinas de algodãozinho, toalhinhas bordadas ou de crochê... potes, botijão de gás, liquidificador, todos devidamente vestidos com suas saias de algodão xadrez. Mulheres como MÃEZINHA nasceram e vivem a vida em circos ou Companhias ambulantes, morando ou em barracas ou em trailers ou em camarins e até em ônibus adaptados. Artistas-donas-de-casa, elas aprenderam a transformar o espaço onde moram temporariamente em casas. E conseguem.

(MÃEZINHA está muito atarefada no fogão, ao mesmo tempo em que tira a roupa do número anterior)

DONA VIRGÍNIA – (fora) Dá licença...

MÃEZINHA – Ham.

DONA VIRGÍNIA – (fora) Ô de casa...

MÃEZINHA – Heim.

DONA VIRGÍNIA – Ô de casa, dá licença... (e aparece na cortina da porta).

MÃEZINHA – Heim. (Olha de relance para DONA VIRGÍNIA) Quê que foi?

DONA VIRGÍNIA – Eu tava chamando desde lá da porta, é...

MÃEZINHA – (ocupada) Ah.

DONA VIRGÍNIA – ...Mas eu não encontrei ninguém e fui entrando...

MÃEZINHA – (ocupada) Sei.

DONA VIRGÍNIA – A senhora me desculpa se eu estou incomodando...

MÃEZINHA – (ocupadíssima) Olha, meu amor, o show tá completo e ninguém aqui está precisando de artista, não. E de mais a mais, o que está entrando na bilheteria está dando mal e mal pra pagar os contratados, que dirá pra contratar número novo. Se tu é de teatro já deve estar sabendo que o mar não tá pra peixe.

DONA VIRGÍNIA – Quem! Eu? De teatro?

MÃEZINHA – (ocupada) É.

DONA VIRGÍNIA – Ai, quem me dera...

MÃEZINHA – (ocupada) Chi... Se é da Avon então nem precisa perder o seu tempo.

DONA VIRGÍNIA – Da Avon?!?

MÃEZINHA – O dinheiro por aqui anda mais curto do que manga de colete.

DONA VIRGÍNIA – (divertida) Mas que Avon, que nada, dona coisa, eu sou a dona Virgínia...

MÃEZINHA – (depois de olhar pra ela, sem reconhecer) Ah, sei.

DONA VIRGÍNIA – Não, sabe o que é? É que eu moro aqui perto do teatro, aqui no duzentos e trinta e seis da ....... (nome de uma rua próxima ao teatro), sabe onde é?

MÃEZINHA – (ocupada) Não.

DONA VIRGÍNIA – Então... e como eu adoro teatro, toda vez que eu sei que tem uma Companhia neste daqui eu dou um pulinho... assim, pra bater um papinho, sabe como é? (rápida) Não na hora do espetáculo, é claro, que é pra não estorvar, né? Deus me livre.

MÃEZINHA – (ocupadíssima) Isso é.

DONA VIRGÍNIA – Então. Eu quero conversar com os artistas...

MÃEZINHA – (ocupada) Ah.

DONA VIRGÍNIA – Vocês artistas são umas pessoas tão... assim tão... sensitivas, né? Não é assim que se diz?

MÃEZINHA – (ocupada) Não sei.

DONA VIRGÍNIA – Quer dizer, pelo menos na minha opinião, né?

MÃEZINHA – (ocupada) É.

DONA VIRGÍNIA – Mas... pera um pouco... Eu parece que estou reconhecendo a senhora de algum lugar...

MÃEZINHA – (ocupada) Ham.

DONA VIRGÍNIA – NOOOOOSSA!!!

MÃEZINHA – Que foi?

DONA VIRGÍNIA – Mas não é a senhora que faz aquela... A mãe, aquela velhinha, no drama?!

MÃEZINHA – (ocupada) É.

DONA VIRGÍNIA – Mas quem havia de dizer! Vocês artistas são de morte mesmo, heim? Imagine a senhora que eu pensei que fosse uma velha mesmo, né? E quando acaba a senhora é tão moça ainda...

MÃEZINHA – Moça?!

DONA VIRGÍNIA – Então.

MÃEZINHA – (atenta) Acha, é?

DONA VIRGÍNIA – Nossa! Pois a senhora não viu que eu nem reconheci? Eu fiquei aqui falando, falando e nem me passou pela idéia que fosse a senhora.

MÃEZINHA – (se olhando no espelho) Não reconheceu mesmo, é?

DONA VIRGÍNIA – Mas nem de longe, eu não estou dizendo pra senhora? E se não é a senhora mesmo que me diz eu ainda não acreditava...

MÃEZINHA – É-é? (e no espelho).

DONA VIRGÍNIA – Pois no palco a senhora fica uma velha perfeita, quem é que podia imaginar que a senhora é ainda tão nova...

MÃEZINHA – (de repente) Mas o quê é que está fazendo aí na porta? Entra, entra.

DONA VIRGÍNIA – Ai, bregada... (e começa a tirar o sapato)

MÃEZINHA – Mas o quê que está fazendo agora?! Mas não precisa não, o que é isso.

DONA VIRGÍNIA – Não senhora, aí está tudo tão limpinho.

MÃEZINHA – Ora, que nada, sábado é dia de faxina de novo.

DONA VIRGÍNIA – Não, não, de jeito nenhum... (e entra com os sapatos na mão).

MÃEZINHA – Senta aí, dona...

DONA VIRGÍNIA – Ai, bregada.

MÃEZINHA – Como disse mesmo que se chamava?

DONA VIRGÍNIA – Virgínia, é...

MÃEZINHA – Ah, então.

DONA VIRGÍNIA – Ai, mas se a senhora soubesse como eu tenho inveja da senhora!

MÃEZINHA – De mim?!

DONA VIRGÍNIA – Então, de vocês todos, os artistas.

MÃEZINHA – Ah...

DONA VIRGÍNIA – Ai, eu acho tão lindo! Tão lindo! Olha, eu vou dizer uma coisa pra senhora que muito pouca gente sabe, viu? Mas o maior sonho da minha vida era ser artista... E olha que até que eu acho que tenho um pouco de jeito, viu? Porque quando eu era garota... assim, meninota, né?... não tinha uma festa no colégio que a professora não me pusesse ou pra recitar ou pra cantar ou qualquer coisa assim.

MÃEZINHA – Não diga...

DONA VIRGÍNIA – Ah, então. Eu sempre fui apaixonada. Até uma época aí – não faz muito tempo, não – me convidaram pra trabalhar num teatro aí... se chamava, se não me engana, Sociedade Literodramática da Paróquia de São Dionísio, é...

MÃEZINHA – É?

DONA VIRGÍNIA – Então. Me deram o escripi e tudo. Parece até que eu ia fazer papel de má. Ai, menina, eu adoro papel de má, eu fiquei louca... estava tão influída pra ir... Mas daí eu fiquei naquela coisa de vou-não-vou, vou-não-vou... e acabei não indo. Família, sabe como é, é um estorvo mesmo.

MÃEZINHA – O marido não deixou...

DONA VIRGÍNIA – Que marido, menina? Ai, a senhora tem cada uma... Eu ainda sou solteira...

MÃEZINHA – Ainda?!

DONA VIRGÍNIA – Solteirinha da Silva, graças a Deus.

MÃEZINHA – Ah, sei.

DONA VIRGÍNIA – Família que eu digo é a minha mãe que fica me enchendo a paciência: é, porque teatro não é lugar pra moça direita...

MÃEZINHA – Ah.

DONA VIRGÍNIA – ... e porque vai ensaiar de noite, e porque não é hora de moça solteira andar na rua, porque depois fica aí falada e não arruma casamento mesmo... e essas coisas, a senhora sabe como é mãe, né?

MÃEZINHA – Sei.

DONA VIRGÍNIA – Ah, sim, porque a senhora pensa que ela sabe que eu vim aqui? Qui... Ela nem sonha, minha filha, porque se sonhasse ela aprontava um banzé e não me deixava sair de casa nem por um decreto. Ela diz que não quer que eu me dê com gente de teatro, porque é tudo marginal, ninguém vale um tostão.

MÃEZINHA – Ah...

DONA VIRGÍNIA – Ah, sim porque se não fosse isso, minha filha, é, há séculos que eu já tinha entrado pro teatro. Porque é como eu digo pra senhora, o maior sonho da minha vida era estar em cima de um palco...

(Desce um telão fantasia sobre o camarim de MÃEZINHA.)

MÃEZINHA – E está.

DONA VIRGÍNIA – Heim?!

MÃEZINHA – Acontece, meu amor, que a senhora está em cima de um palco.

DONA VIRGÍNIA – Ah, não... eu sei... Mas eu digo assim, na hora do drama... representando, né? Fazendo assim um papel bem dramático e todo aquele mundo de gente olhando pra mim. Ai, credo... pra dizer a verdade a única coisa que eu morro de medo de ser artista, mas tenho um medo que me pélo toda, é de imaginar que fica aquele monte de gente olhando pra gente, né? Ui, credo... só de pensar já me dá até calafrio.

MÃEZINHA(Dá um sinal e se acendem as luzes da platéia.)

DONA VIRGÍNIA(Vendo o público, dá um grito e fica estatelada no meio do palco.)

MÃEZINHA – Isso daqui é Teatro, dona Virgínia. E aqui até o sonho mais antigo pode ficar de verdade.

DONA VIRGÍNIA – Ai, minha Nossa Senhora do Ó.

MÃEZINHA – Vai lá, Dona Virgínia, e faz o seu sonho ficar de verdade.

DONA VIRGÍNIA – Mas... agora?

MÃEZINHA – Agora, antes que seja tarde demais.

DONA VIRGÍNIA – Mas eu nem estudei o escripi. Eu nem sei qual é o meu papel... .

MÃEZINHA – O público também não sabe. De modos que qualquer coisa que a senhora fizer eles vão achar que é assim mesmo.

DONA VIRGÍNIA – Mas eu não sei nem o que eu vou dizer... .

MÃEZINHA – A senhora diz o que a senhora está sentindo.

DONA VIRGÍNIA – Eu?! Mas eu só estou sentindo medo.

MÃEZINHA – Então diz isso... Maestro.

Cena 4

(Cortina Musical) O MEDO

Telão fantasia ou na frente da cortina.
(Dona VIRGÍNIA e CORO cantam e dançam.)

CORO – Virgem,
Credo,
Ai que medo...

DONA VIRGÍNIA – Ai, da calda não dar ponto,
Do molde não dar no pano,
Do tinhorão não vingar,
Da louça fina trincar...

CORO – Virgem,
Credo,
Ai que medo...

DONA VIRGÍNIA – Que medo de mau-olhado,
De sapato debruçado,
De roupa posta do avesso,
Lascado em santo de gesso...

CORO – Virgem,
Credo,
Ai que medo...

DONA VIRGÍNIA – De novena interrompida,
De comida amanhecida,
De no escuro dormir,
Pio de coruja ouvir...

CORO – Virgem,
Credo,
Ai que medo...

DONA VIRGÍNIA – Porém, mais que disso tudo,
Tenho mais medo no mundo,
Mais que de artista não ser,
Tenho medo de morrer.

CORO – Virgem,
Credo,
Ai que medo...

DONA VIRGÍNIA – Tenho medo de morrer
Virgem...

CORO – Credo,
Ai que medo...

DONA VIRGÍNIA – Tenho medo de morrer
Virgem...

CORO – Credo,
Ai que medo...

Cena 5

SOBRE AS REALIDADES NO TEATRO

Nos bastidores. Portas dos camarins

(Movimento normal dos bastidores. ATORES que passam com material de cena. ATORES que, vestidos com roupa do último número, entram apressados em seus camarins. Por uma porta entreaberta pode-se ver uma ATRIZ se maquiando.)

(MÃEZINHA entra, acompanhada por DONA VIRGÍNIA.)

DONA VIRGÍNIA – Ai, dona coisinha do céu, mas eu nunca pensei que fosse ter tanto medo em toda a minha vida... Quando eu me vi na frente daquele mundaréu de gente, eu nem sei...

AMADA(Abrindo a porta do seu camarim) Um momento.

MÃEZINHA – Heim?

AMADA – Aleluia, yo quiero hablarle.

MÃEZINHA – Ablarle?!

AMADA – Si.

MÃEZINHA – Ah. (Para Dona Virgínia) Eu não há meio de me acostumar com a língua dessa gringa...

AMADA – Si, quiero discutir con usted sobre mi número de apresentación.

MÃEZINHA – Ah, sei, a gente abla depois que agora eu tenho mais que fazer. (E vai saindo.) Vem, Dona Virgínia.

AMADA – Pero és apenas un ratito...

MÃEZINHA(seca) Agora não, meu amor. Outra hora, tá? (E sai com Dona Virgínia.)

AMADA(Para o lugar por onde saiu MÃEZINHA) Vaca.

LOLOGIGO(Aparecendo na porta do camarim de AMADA, fumando calmamente) Não disse? O que foi que eu te disse? A velha aí é um osso duro de roer. E de mais a mais, pode tirar o cavalinho da chuva que ela não vai topar não, que ela não é besta de fazer o bolo pros outros apagar a velinha. E ouve bem o que eu vou te dizer: neste espetáculo aqui pra aparecer mais que ela só pintando a bunda de vermelho.

AMADA – Pero conmigo no. No. Vieja sin berquenza. Ella me paga y mucho caro, te lo digo.

LOLOGIGO – Qui paga o quê. Tu também não é de nada. Tu gosta muito é de falar. Tu e essa cambada toda que dá duro aí pra ela ser a estrela.

AMADA – Quien?! Yo?! Nin elle nin tu sabem quien soy yo...

LOLOGIGO – Qui... Cês tem ó, é papo: falam, falam, falam, mas na hora agá cadê o peito pra enfrentar a jararaca?

AMADA(Entrando no camarim) Ora, tu tambien, sale de ay y no me enche el saco...

LOLOGIGO – Há, há, há, há, há, há...

Cena 6

SOBRE A SOBREVIVÊNCIA NO TEATRO

Camarim de MÃEZINHA.

DONA VIRGÍNIA – Uma boa bisca é o que ela deve de ser, não é não?

MÃEZINHA – Ham. Quem não te conhece que te compre.

DONA VIRGÍNIA – Ah, eu não te disse? Eu logo vi. Até no drama, a senhora sabe? Assim que ela apareceu, eu logo disse: Hum essa daí boa coisa não deve ser não... E olha aí. E ainda por cima ela vem lhe dizendo nomes.

MÃEZINHA – Nomes? Que nomes? Palavrão?

DONA VIRGÍNIA – Sei lá, mas na hora eu achei que era gozação pra cima da senhora.

MÃEZINHA – Não reparei.

DONA VIRGÍNIA – Olha, se eu bem ouvi, parece que ela chamou a senhora de aleluia...

MÃEZINHA – Mas eu me chamo Aleluia.

DONA VIRGÍNIA – Heim?!

MÃEZINHA – Aleluia Simões.

DONA VIRGÍNIA – Ah, sei... Puxa, mas que nome bonito!

MÃEZINHA – É.

DONA VIRGÍNIA – É sim.

MÃEZINHA – Então.

(Pausa de constrangimento.)

DONA VIRGÍNIA – Mas – desculpa perguntar, viu? – mas o que é que a senhora tanto mexe aí nessa panela?

MÃEZINHA – É a massa do croquete.

DONA VIRGÍNIA – Croquete?! Hum, quer dizer então que hoje temos croquetes pra janta?

MÃEZINHA – Qui janta, meu amor? Qui janta? É pro bar do seu Adalberto.

DONA VIRGÍNIA – Do seu Adalberto? O seu Adalberto da Cruz de Malta ali da esquina?! Do quarteirão de cima?!

MÃEZINHA – É. Esse daí.

DONA VIRGÍNIA – Puxa! Eu conheço o seu Adalberto fazem anos e não sabia que ele era assim tão amigo de uma artista coma senhora.

MÃEZINHA – Amigo?!

DONA VIRGÍNIA – Pra fazer croquetes pra ele...

MÃEZINHA – Qui amigo o quê, meu amor, eu só forneço os croquetes pro bar dele. Cem unidades por dia a três cruzeiros a unidade.

DONA VIRGÍNIA – Puxa!

MÃEZINHA – Isso e mais a pipoca e mais o pirulito que o Campônio vende no intervalo, dão uma mãozinha, né? Não é lá grande coisa, mas se eu for contar só com o dinheiro da bilheteria eu tô frita.

DONA VIRGÍNIA – Não me diga!

MÃEZINHA – Ah, meu amor, logo que a gente se instala numa praça e que eu vejo que a temporada vai durar algum tempinho, eu faço logo a via sacra dos bares da redondeza pra pegar encomenda. Cê não conhece nenhum bar que queira não? Eu também forneço coxinha, empada, esfirra, quibe...

DONA VIRGÍNIA – Ai, dona coisa, eu acho a senhora uma sacrificada.

CANASTRA(entrando) Com’é mulher... ainda não tá pronta pro número do tempero?!

MÃEZINHA – Faça o favor de não vir pra cá me encher o saco que eu não preciso de ninguém me dizendo a hora que eu tenho que estar pronta pra entrar em cena.

CANASTRA(divertido) Opá! Será que eu disse alguma coisa errada? (para a cabine de luz) Ô, Brilhantina, tu ouviu se eu disse alguma coisa errada?

BRILHANTINA(no sarro) É, meu chapa, o negócio hoje não tá bom pro teu lado, não.

CANASTRA(para Dona Virgínia) Agora a senhora me diga: eu disse alguma coisa errada?

DONA VIRGÍNIA – Quer dizer...

MÃEZINHA – É. Porque tem uns e outros aí, viu, Dona Virgínia? Que são muito engraçados: já acharam a cama feita e ainda tem a coragem de botar banca. É.

CANASTRA – Ô Brilhantina, tu acha que esse uns e outros aí, sou eu?

BRILHANTINA(Gargalhada)

MÃEZINHA(para DONA VIRGÍNIA) Porque eu, meu, pra ter o que comer na vida tive que dar duro. Quer dizer: tive não, TENHO, né? Porque eu que não me vire, que eu quero ver se alguém vem me dar alguma coisa de graça.

CANASTRA(divertido) Ô... ô Mãezinha, como é que tu me passa um esculacho desse aí, na frente das visitas? Essa moça aí nem me conhece nem nada, ela vai pensar o quê de mim?

BRILHANTINA(Gargalhada)

MÃEZINHA – Agora, o que eu gostava mesmo era ver essa cambada passando pelo que eu já passei na vida: morando em barraca de lona como eu já morei. Ou debaixo de arquibancada de circo.

DONA VIRGÍNIA – Ai, dona coisa do céu.

MÃEZINHA – Eu só queria ver.

DONA VIRGÍNIA – Olha, dona Aleluia, eu não tenho nada que ver com isto, viu? Mas eu se fosse a senhora largava o teatro.

CANASTRA(divertido) Largava o quê?!

BRILHANTINA(gargalhada)

DONA VIRGÍNIA – Por que é que a senhora não entra pra televisão?

CANASTRA(sarro) Opá.

MÃEZINHA – Televisão?!

DONA VIRGÍNIA – É. Porque tem muita artista de novela que não representa uma velha tão bem como a senhora e no entanto está lá, né? Aquelas sirigaitas, só se exibindo, ganhando os tubos e sem precisar nem fazer croquete pra fora, nem nada... porque diz que na televisão eles pagam uma fortuna, a senhora sabia? É, minha filha...

CANASTRA – Brilhantina, porque é que tu não entra pro cinema?

BRILHANTINA – Só se for lanterninha...

CANASTRA e BRILHANTINA(Gargalham)

DONA VIRGÍNIA – Não é sim: porque teatro... Teatro é uma coisa que ninguém mais liga, pensa que eu não vejo? Enquanto que televisão todo mundo vê... É sim, minha filha, quem é que não tem sua televisão hoje em dia?

MÃEZINHA – Olha, meu amor, no circo a gente tem um ditado que diz... porque eu nasci num circo, a senhora sabia?

DONA VIRGÍNIA – É-é?

MÃEZINHA – Nasci. Meu pai e minha mãe já eram artistas... Mas isso no tempo que o circo era circo, né?

CANASTRA(Nas costas de MÃEZINHA) Chi... (faz tempo...)

MÃEZINHA(Mexendo a panela) Então. Lá o pessoal tem um ditado que diz que gente de circo tem serragem nas veias. E é mesmo. Teatro é uma coisa, viu? Conheço muita gente que se mandou. Foram tentar outra coisa, né? Uma coisa mais garantida e tal... Pois olha: quase todos acabaram voltando. É a serragem. Vai te dando uma tristeza... Você passa o dia todo esperando. Mas esperando o quê? Você sabe muito bem que pra você não vai ter nenhum espetáculo de noite, né? Mas assim mesmo você passa o dia todo esperando. E de noite... Ah, de noite é que é duro. De noite fica de noite mesmo, né? Tudo escuro, quieto... As luzes não acendem, não tem a cara do público, não tem as risadas... Não tem a festa! Você já foi em alguma festa que chegou lá e não teve? Pois é igual. Daí é batata, você não agüenta. Na primeira oportunidade, bumba, lá tá você com a cara pintada de novo.

CANASTRA(Com gesto e som imita um violino)

BRILHANTINA(gargalhada)

MÃEZINHA(percebendo) Vá, vá, vá, vê se pára com essa palhaçada, vá. Vem aqui fazer alguma coisa de útil na vida. Vem experimentar o tempero da massa.

CANASTRA – Opá! Taí um trabalho que eu não me incomodo de fazer. (provando da colher que MÃEZINHA lhe dá) Hum...

(Toda a luz se apaga e fica o spot-móvel sobre CANASTRA provando o tempero)